100 ANOS DE LUIZ GONZAGA: O BRASIL SE DESCOBRE SERTÃO

Queria mangar do pai – e o mais curioso – disse isso em alto e bom som. Em geral, não se zomba do pai impunemente. Quantas vezes essa ideia aparece em canções? Não lembro de nada parecido, geralmente o discurso é meloso ou dramático, do tipo ‘pai herói’ ou ‘afasta de mim esse cálice’. Mas em ‘Respeita Januário’ de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira (1950) a coisa é bem diferente, deixando logo no ouvinte a sensação de um lugar cultural próprio.

gonzaga

É que a escolha sutil do verbo ‘mangar’ coloca essa rivalidade no campo do humor, da troça (dizem que mangar vem de mugango, fazer mímica e caretas), tudo girando em torno de um fole prateado, que um tinha e o outro não. E quanta coisa simboliza esse fole prateado…

Ex. 1 (texto)

Quando eu voltei lá no sertão eu quis mangar de Januário com meu fole prateado Só de baixo cento e vinte botão preto bem juntinho como nêgo empareado

Ora, essa ‘leveza’ de caráter aparece por inteiro no gesto inicial da melodia, todo puladinho com as notas da Tônica (Láb, c. 1-2) e da Dominante (Mib, c. 5-6), uma marca de estilo tradicional do forró- dá para imaginar Alzira sacudindo o pescoço pra lá e pra cá. Na verdade, o que temos aí parece uma transposição da rítmica do triângulo para a voz, dando origem a linhas melódicas com muitos ataques (e muito texto), uma coloração toda especial.

Ex. 2 (música)

Mas o pula-pula melódico, que traduz muito bem a irreverência do sanfoneiro filho, também vai marcado por uma aderência rigorosa aos acentos de cada tempo (veja em negrito, no Ex. 1), enfatizando ainda mais a jocosidade, a brejeirice de um gesto melódico que parece querer saltitar, mas sempre é puxado pra baixo (na direção dos 8 baixos), pros eixos.

Esse rigor de acentuação também se reflete na arrumação simétrica das frases. A primeira, harmonizada em Tônica se dirige à Dominante através da célula – láb-sib-láb-sol-mib, grafada no Ex. 2 como (a). A segunda ao contrário, harmonizada em Dominante retorna à Tônica – mib-réb-dó-láb, grafada como (a’ ). Essas células conclusivas são como panos que caem articulando a narrativa.

É como se as funções harmônicas opostas e complementares passassem a representar mais do que isso, projetando as tensões épicas do conflito entre pai e filho, montando o cenário dual onde tudo vai acontecer. Rigor e pinotes compondo a cena musical da relação entre um pai e filho.

Digo ‘épicas’ por que trata-se de uma narrativa de retorno do herói à sua origem – “quando eu voltei lá no sertão…”1. Portanto, podia ser Ulisses voltando, só que com chapéu de couro, já famoso em todo o Brasil, e pronto para fazer bonito em sua passagem por Granito…

Logo percebemos que essa troça do início, essa sem cerimônia de chamar Januário pelo nome (sem nenhuma marca de respeito), esse afã de fazer bonito esculhambando o fole do pai, e até mesmo humilhando-o com uma sanfona de 120 baixos – tudo isso é apenas o prenúncio de uma curiosa reviravolta moral, uma verdadeira fábula construída com material da própria vida – o que certamente exige uma sintonia fina entre compositor e letrista.

E não deve ser por acaso que a reviravolta acontece em Granito, lugar de dureza paradigmática.

Ex. 3 (música)

Mas antes de fazer bonito de passagem por Granito Foram logo me dizendo: “De Itaboca a Rancharia, de Salgueiro a Bodocó, Januário é o maior!” E foi aí que me falou meio zangado o véi Jacó:

Pois foi aí em Granito que o narcisismo do filho partiu-se, quando esse verdadeiro coro grego personificado pelo veio Jacó estabeleceu os limites do reinado de Januário, levando o próprio narrador-cantor (doublé de herói ou anti-herói) a proclamar que Januário é o maior!

Na gravação original Cf. Youtube esse gesto é feito com grande sutileza, há um suave glissando no mib agudo, que tanto pode ser ouvido como uma imitação do clamor do povo, como uma reação irônica a tal reinado, ou ainda uma aceitação contrita da força do velho.

Em termos composicionais a música dessa segunda parte da canção caminha para uma tonicalização da Dominante, Mib (antigamente diziam modulação transitória). Esse movimento coincide com a exaltação do velho, através da célula grafada como (a” ),que aliás contem o ré natural, a sensível do novo tom.

Então é como se a força do reconhecimento do velho estivesse casada na música com a força de atração para a nova região harmônica. Mas a modulação é transiente e traz aspectos curiosos. O grande gesto quase recitativo – “e foi aí que me falou meio zangado o veio Jacó” – desdobra um longo arpejo em Mib, e portanto, seria uma exaltação harmônica de Januário, por assim dizer.

Mas eis que falsifica o próprio Mib com sua sétima (réb) e propicia o retorno ao tom inicial, Láb, onde a descompostura-refrão – “Luiz, respeita Januário” – dá início à parte final da canção. Essa é uma quadra deveras interessante. Passada a região central de quebra do narcisismo e de expiação, essa descompostura final, ao invés de diminuir Luiz, também o engrandece: “você pode ser famoso mas seu pai é mais tinhoso”. Igualados em rima, um famoso, o outro tinhoso (e essa palavra tem muitas conotações para uma psicanálise da canção), seguem em pé de igualdade e de diferença…

Ao representar o herói narrador como tendo pretendido mangar do pai, e tendo recebido a devida descompostura, a canção aciona uma espécie de catarse que o perdoa – pois ele próprio canta sua desgraça, ele próprio admite seu erro. O grande Luiz Gonzaga, Rei do Baião, fica maior ainda ao reconhecer o valor dos 8 baixos do seu pai. Chega como menino narcisista e leviano, e sai como homem feito. Já não se trata de medir as coisas pelo número, 120 versus 8, e sim pela sacralidade da relação que as enlaça, pela sacralidade da vida e da sanfona.

Ora, então, se o sertão é o lugar dos coronéis e do patriarcalismo repressivo, também é o lugar onde se pode rir do pai (e rir de si mesmo por querer rir dele) – e muito haveria para desenvolver nessa linha sobre a maturidade da cultura nordestina/sertaneja: um lugar onde é possível ultrapassar o impulso narcisista na direção de um reconhecimento legítimo (e jocoso) da tradição, que vem de dentro da gente. E tudo isso num xote danado de bom…

————-

1 Não custa lembrar que naquela época não estávamos divididos entre sudestinos e nordestinos, havia o sertão, tanto para Guimarães como para Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga.

Deixe um comentário