Paulo Costa Lima
O assunto transcende.
Olha que maneira elegante e misteriosa de iniciar uma crônica! O assunto transcende!
Não precisa dizer nem o assunto nem o que estaria sendo transcendido. Talvez seja mais um importante passo na direção do ideal de escrever a crônica sem pecado e sem assunto.
Mas com esses desvios que comentam o processo, a forma e até os ideais, talvez perca de saída o leitor objetivo, aquele que deseja ir direto ao cerne da experiência, sem transcendências, se possível.
E será que existe mesmo a alternativa de ‘ir direto ao assunto’?
Por exemplo, essa facilidade sem preliminares que o texto da internet exibe a cada dia… Não seriam todos os textos da internet mais ou menos influenciados pelo mundo virtual pornô?
Ou seja: assim como nos sites de sexualidade explícita os textos da internet são compelidos a dar logo o que têm que dar, são plasmados, de alguma forma, pela impaciência da ‘pulsão de ver’ que habita os nossos voláteis usuários.
Se quiserem uma formulação mais popular – ou dá ou desce! Desce com o cursor procurando coisa mais palatável página abaixo.
Trata-se de uma pulsão que invade tudo, desde a ciência ou arte de arrumar produtos numa prateleira de supermercado ao mundo das notícias, passando pela política (basta lembrar do ‘bateu levou’), pelo ensino privado e certamente pelo show business.
Sendo assim, ‘ir direto ao assunto’, comporta além do próprio assunto, uma transcendência que, no mínimo, é o próprio estilo do mostrar, ou do fingir que vai mostrar.
Mas, esse princípio do ‘ou dá ou desce’ – e seu complemento, a pirraça e o fingimento tipo strip tease – parecem fazer parte mesmo do cerne da comunicação humana. São elementos indispensáveis da dinâmica das narrativas, e têm a ver com a dosagem daquilo que vai sendo oferecido.
A rigor, o simples ato de prestar atenção se relaciona com essa lei do ‘ou dá ou desce’, através da esperança constante de produzirmos prazer e sentido.
Neste ponto vale abrir um parêntesis para perguntar pelo significado original da expressão ‘ou dá ou desce’. O blog do Reinaldo Azevedo afirma que a expressão original seria na verdade ‘ou dá ou desse’, fazendo um revirão entre presente do indicativo e pretérito do subjuntivo.
Outras versões incluem a alternativa motorizada (ou dar ou descer do carro, moto etc.) e o do dilema absurdo-e-lógico (ou dá ou desce as calças).
As alternativas confirmam que a expressão dramatiza um certo fatalismo bastante em voga: ‘ou dá ou dá de qualquer forma’. Predomina, portanto, a eficácia de uma economia de serviços.
É claro que a impaciência da pulsão do leitor é uma função do próprio mercado. Ele sai avaliando o prazer da leitura em termos da rapidez do ‘chegar diretamente ao assunto’, e daí vai resvalando de manchete em manchete.
Mas se o leitor ainda está conosco é justamente por causa do frisson de um tema como o ‘dá ou desce’. Estamos tirando energia do mesmo moinho, apesar das pinceladas de erudição. Me contaram que tem gente que lê os textos de Freud apenas para se excitar. Os assuntos são sempre facas de muitos gumes.
De forma que o assunto desta crônica pode recair em campos tão diversos como a economia, a comunicação, a psicanálise ou teorias das artes. Pode também fingir que está em alguma dessas áreas, algo absolutamente legítimo diante da leveza do meio.
Imaginem se Jane Austen tivesse que escrever seus romances pela internet. Acabo de ler o folhudo ‘Mansfield Park’ onde a gente fica curtindo os volteios da pena durante páginas e páginas até que o sujeito perceba que está se apaixonando pela donzela.
Parece óbvio afirmar que a dinâmica da recepção de narrativas tem se acelerado com o advento do capitalismo cultural. Há uma diferença notável entre Jane Austen e o BBB. A ejaculação precoce era incompatível com o romantismo. Que frase mais jocosa e inconveniente – só mesmo numa crônica desassuntada como esta.
Entrei por uma porta e saí pelas outras.