Não há cosmonauta, simplesmente porque não há cosmos.
O cosmos é uma noção do espírito
Jacques Lacan
Nós, do século XX, construímos o privilégio de vermos a Terra de longe, e de fora. E ao vê-la assim desgarrada, parece que somos invadidos por uma ternura toda especial, uma ternura azul e branca. Como se a terra fosse um espelho, e o que víssemos fosse ao mesmo tempo um berço e uma lembrança antiga. Uma divindade em órbita, e ao mesmo tempo, o mais recôndito umbigo.
É mesmo uma sensação radical de desgarramento, tal como aquela que nos aparece em sonhos, quando pairamos na beirada do teto, ou quando saltamos e percebemos com grande surpresa que estamos flutuando — tem gente que bate os braços como se fossem asas. Acordar desses sonhos é sempre difícil, ninguém quer…
* A tentativa de preenchê-los com percussão em uma das versões no YouTube, mostra que essa escolha sacrifica a fluidez do efeito planador.
Talvez por isso eles tenham entrado na agenda real das nossas narrativas, desde Ícaro. É preciso voar, dizemos a nós mesmos há séculos e séculos. É preciso ultrapassar essa força que nos prende e nos amarra ao chão. E, certamente um dia, será preciso navegar pelo espaço, abandonar o berçário terra, e reverter apenas ao pó das estrelas. Flutuar é preciso.
Pois, essa me parece a maior força musical da canção Terra, de Caetano Veloso. Mais do que diz, o refrão da canção flutua, ou seja, coloca o ouvinte num certo estado de flutuação melódica (cante aí para lembrar, ou veja no YouTube):
Terra, Terra,
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?
É muito mais fácil sentir que a canção flutua do que explicar como é que ela consegue isso. Na verdade, olhando mais de perto, verifica-se que a sensação não é apenas de flutuar, mas de planar, como se fôssemos descendo até encontrar o chão do último verso, na última sílaba da última palavra — (quem jamais, te esqueceria).
Esse, aliás, um tópico amplo e muito discutido atualmente. A capacidade da música de formar gestos e redes de significado a partir do movimento — ou melhor, das metáforas que esses movimentos oferecem. Um exemplo fácil de acessar na memória musical é o Danúbio Azul de J. Strauss que faz a nave flutuar e orbitar no espaço (no filme 2001…), mostrando que a valsa pode ter implicações siderais — e ninguém havia pensado nisso antes, até então ela servia apenas para rodopiar por aqui mesmo.
No caso de Terra, vários fatores contribuem para esse efeito planador. O mais fácil de mencionar é o tratamento da harmonia. Nessa canção, a Tônica (Dó maior) representa a chegada no chão (jamais esqueceria…), e é guardada a sete chaves, só aparecendo mesmo no final da linha.
A canção apresenta uma espécie de gangorra ao ouvinte. Primeiro uma subida íngreme (onde a harmonia estática utilizada é a Dominante, Sol). Vai recheada de espinhos melódicos (dó# em sol) provenientes da utilização do modo lídio (adiante percebe-se que é lídio-mixolídio). Começa na “cela de uma cadeia” e vai até a visão erótica de alguém que estava “coberta de nuvens”, e funciona como uma preparação e armazenamento da energia que vai ser dissipada logo após, no vôo suave do refrão.
Só depois de atingir o pico é que começa a descida melódica gradual em parceria com um movimento harmônico simples e singular — colocando a Dominante depois da Tônica, e não antes (o resultado é uma Tônica mais instável, que escapole facilmente para o retorno da estática anterior, na Dominante, a ponto do Songbook se confundir, registrando Sol como Tonalidade da peça):
O efeito de planar também depende dos espaços vazios deixados na melodia. Observe como a palavra terra é tratada: a primeira sílaba curta e acentuada, a segunda longuíssima e fraca. Há sempre uma duração longa suavizando a descida (distante, errante, navegante, jamais, esqueceria).
Os movimentos melódicos ou são descendentes (como em terra), ou em forma de arco (por mais distante, o errante navegante), ou seja, apresentam uma subida e uma descida, e são vitais para o controle do movimento geral, que desce de forma gradual, dando idéia de vôo que plana.
Esse traçado composicional tem a complexidade das coisas simples. A idéia da peça extrapola a sonoridade da voz (embora a voz seja tudo) e mesmo a sintaxe dos acordes, para convocar a sonoridade da imagem e do sonho antigo. Mais do que a voz, é o sonho que soa.
Desaprisionado pelas nuvens, esse leão de fogo acede à alegria de ser gente, planando no chão do real não sem uma certa nostalgia, uma nostalgia de navegador português, de Fernando Pessoa, e de São Salvador.