Meu caro amigo: uma homenagem a Chico e Hime

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Paulo Costa Lima
De Salvador (BA)

O que há de tão especial nessa canção?

De um lado o tom da delicadeza – existe algo mais carinhoso do que um “meu caro amigo”? E que vai adiante: me perdoe por favor, se não lhe faço uma visita… É uma linguagem bálsamo que a entonação quase jocosa de Chico realça e projeta (Confira no Youtube).

De outro, o tom do desabafo, um painel de durezas elencadas em carritilha logo após “a coisa aqui ta preta”, registrando muita mutreta pra levar a situação, e nessa mesma linha: careta, pirueta, sarro, sapo, cachaça… O desenlace é inevitável: “ninguém segura esse rojão”.

Quem viveu a década de 70 no Brasil sabe como foi intolerável o massacre de mídia do bordão “ninguém segura esse país” – a ditadura insistia em ser coisa nossa. A canção dá o troco, com uma dose vingativa e terapêutica de ironia e de pirraça: não é um país, e sim um rojão. O verso talvez tenha sido profético, basta lembrar o rojão que estourou no Rio Centro alguns anos depois.

Portanto, lá vai a canção, florescendo sobre uma polaridade – cruel e meiga. Não que soe partida ou desinteira. Nada disso, desce redonda pelo ouvido até o peito, e aí está um de seus grandes feitos. Sua emoção costura uma série de valores e de posições, tudo a partir de dois princípios estruturantes: a convocação do chorinho e o discurso intimista da carta.

Ambos elegem como objetivo maior a inclusão do ouvinte como membro da comunidade auditiva e pensante estabelecida pela canção, uma comunhão sonora. O bom ouvinte também é um dos destinatários da carta, pertence a seu mundo de sentido, com o qual se identifica, um caro amigo.

Neste manifesto simultaneamente sutil e destemperado, Chico e Francis colocam a melhor herança da música brasileira, e todos que com ela se identificam, em rota de colisão crítica com o antigo regime, que graças aos céus e a muitos espinhos e pingos de suor e sangue ávidos por uma outra realidade, foi-se. Ficou a pérola.

Mas de onde vem a força do chorinho? O chorinho foi um dos primeiros exercícios de abrasileiramento que a nossa música precisou desenvolver (a partir do final do século XIX). Recebe gestos da tradição “urbana” ocidental de polcas e xótis (originalmente vindos do mundo camponês) e os reconfigura.

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O que vemos no primeiro gesto da canção é algo claramente derivado da tradição de um Pixinguinha (confira o solo de flauta da introdução). O gesto melódico é forjado com a malícia e a malandragem desses volteios que sobem e descem. E embutidos nos volteios uma rítmica claramente influenciada pela mentalidade africana – por exemplo, a acentuação “contra-hegemônica” da última semicolcheia de cada grupo – dó-si; si-lá; lá-sol – (também no pandeiro), e a formação de um jogo complexo de acentos rítmicos versus acentos métricos (3 contra 4), que mesmo sem querer mexe com o corpo.

Esse gesto instrumental funciona como uma matriz que vai dar origem a todos os outros da canção, e se encaixa na voz de Chico com uma naturalidade impressionante (sem o fá#?), como se fosse mesmo uma conversa entre amigos. (Entregue a uma soprano lírica seria um transtorno).

É claro que o gesto imita a entonação da fala carinhosa e jocosa (sobe – desce – sobe de novo – repousa), mas estica essa lógica quase ao absurdo, com subidas e descidas íngremes (oitavas e quintas) e inflexões cromáticas.

Um analista muito entusiasmado consigo mesmo diria que a proximidade (os semitons) e a distância (as oitavas e quintas) desse gesto matriz representam no tecido musical a tendência bipolar da obra – no caso, estar perto e longe – ressoando a delicadeza e o desabafo já assinalados.

A negociação entre volteios rebolativos e uma harmonia típica de choro (I- vio – ii7 – V4/2) produz um curioso efeito sonoro nessa canção, como se fosse uma espécie de “cama de gato” – complica e tensiona até resolver como se nada tivesse acontecido.

Mas não é apenas de proximidade e distância que a “cama de gato” melódico-harmônica está falando. O que inicia como simples delicadeza entre amigos, logo na esquina vai aparecer ligeiramente modulado para cumplicidade, e já beirando o desabafo: “eu ando aflito pra fazer você ficar, a par de tudo que se passa”.

Grifo a expressão “tudo que se passa” porque ela justamente promete muito. Ela afirma que há muito a contar, mas as curvas do discurso seguinte revelam paradoxalmente que “uns dias chove, noutros dias bate sol”. Ora, que grande novidade! “Tem muito samba, muito choro e roquenrol”.

Ou seja: promete-se muito e revela-se pouco. A não ser que a palavra “choro” do último verso seja tão arisca quanto o correio do qual se queixa o autor da carta. Poderia ser mais do que o gênero musical, na direção do horror do choro produzido pela tortura. Futebol rimando com roquenrol mais parece um espinho de alerta. O discurso aparentemente solto da informalidade entre amigos confunde-se com a confissão muda de um ambiente perverso, tudo isso levando a uma constatação sombria embora meio absurda: a coisa aqui tá preta.

Esses pequenos abismos do discurso encontram uma contraparte sonora nos choques melódicos apontados acima, nas subidas e descidas quase insanas, e na pouca presença da terça da tônica (o mi é guardado a sete chaves), tudo isso, porém, sempre envelopado pelo gestual harmônico e rítmico do choro. Tudo muito normal! O ouvinte desatento percebe apenas a beleza do choro e a letra “engraçada”. O ouvinte informado percebe o jogo sutil de denúncia embutido no humor e na ironia. O ouvinte escaldado vai descobrir como o tecido musical de sons e palavras trabalham em parceria constante.

Refaço o percurso das categorias: da delicadeza amiga para a cumplicidade – note-se que a última frase da canção reforça a idéia de um coletivo e não apenas de indivíduos (a todo pessoal, adeus…). Percebemos que a cumplicidade desemboca no desabafo e na denúncia crítica (seja da alienação esportiva e musical ou da tortura). Depois disso surge o painel de bizarrices já comentado anteriormente. Além de ampliar o desabafo, esse painel e a ironia que o finaliza (…rojão) nos fala de teimosia, de pirraça, de engolir sapo, ou seja, de resistência, que se manifesta também através da malandragem do humor e da ironia.

Todos esses valores estão firmemente plantados no solo da canção. Mas eles giram como se fossem um móbile, embalados por algo que os transcende, e que garante a redondeza do discurso: a sedução de pertencimento que envolve o ouvinte cúmplice. Daí para as “diretas já” foi quase um pulo.

Codetta:
Muito ainda haveria a dizer sobre a trama musical da peça. Por exemplo, o jogo sutil que se estabelece entre os saltos e o cromatismo (a proximidade e a distância). Fica o exemplo musical abaixo como aperitivo dessas análises musicais: trata-se da linha melódica da introdução, e os pequenos círculos colocados acima das notas mostra que apesar do volteio ascendente e descendente há uma lógica cromática subreptícia dando unidade ao tecido, tal como o segundo pentagrama registra, uma descida de oitava, de sol a sol:

Melodia da introdução e orientação cromática escondida

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Esse processo continua durante a canção e pode ser ilustrado em diversos pontos, mostrando que a polaridade entre estar próximo e distante é central para o discurso musical da canção. Outros processos: a diferenciação controlada do material motívico a partir da idéia inicial, o planejamento harmônico e formal, o mapa gestual da canção, etc. (fica para outra crônica)

*

¹A harmonia da música popular brasileira é filha direta de Rameau e de sua progressão fundamental.
²Muitos leitores talvez não se lembrem do que seja “cama de gato”, aquele jogo com cordões, que fazem e desfazem padrões (já apareceu numa novela antiga).

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